A coragem de José Maria Rabêlo

Fundador do Binômio, exemplo de resistência e terror de um certo generalPor José Antônio Bicalho


José Maria Rabêlo completou 90 anos e está forte, lúcido e, principalmente, altivo. O fundador e editor do mítico jornal Binômio, que circulou em Belo Horizonte entre 1952 e 1964, não se vergou à perseguição da ditadura militar e ao sofrido exílio de quase 16 anos. Mantêm-se no campo da esquerda, da humanidade e da resistência ao fascismo.

Para a reportagem de O Beltrano, foi uma honra e um prazer ser recebido na semana passada por Zé Maria para uma conversa em seu apartamento. O Binômio, fundado e mantido pelo jornalista por 12 anos consecutivos, é nossa mais declarada referência. O semanário foi um jornal posicionado politicamente, de esquerda, irônico, sarcástico, bem humorado e anarquista de raiz, precursor da imprensa alternativa e que antecipou em 16 anos o que O Pasquim faria no Rio somente a partir de 1969.

Há alguns meses, estive no setor de periódicos da Biblioteca Pública Estadual em BH atrás da coleção do Binômio. A coisa lá não está boa. Como o próprio Zé Maria me disse, por falta de dinheiro eles imprimiam o jornal com o papel mais vagabundo e barato que havia no mercado. As encadernações com os números mais antigos nem estão disponibilizados para consulta em função do péssimo estado. Consegui, a custo, permissão para folheá-los. As páginas estão carcomidas, quebrando e desfazendo-se. Mas já foram fotocopiadas pela UFMG.

Mas ainda é possível ler as deliciosas manchetes debochadas. Consegui encontrar o impagável número que trazia na primeira página “JK foi a Araxá e levou Rolla”, referindo-se à viagem do então governador Juscelino Kubtscheck acompanhado pelo empresário Joaquim Rolla. Oposicionista a JK, o nome do jornal é inspirado no slogan do governo de Jucelino em Minas, o ‘Binômio Energia e Transporte’, que Zé Maria transformou no ‘Binômio sombra e água fresca’.

Mas não foi o boa praça JK o principal adversário do Binômio, nem o democrata JK seu algoz. O jornal foi duas vezes empastelado (o que significa invadido e totalmente destruído) por militares do exército. E definitivamente fechado a partir do golpe de 64.

Zé Maria estava na lista dos primeiros perseguidos e teve que fugir do país, primeiro para a Bolívia, depois para o Chile, e por fim, para a França. É um “tri-exilado”, conforme ele mesmo diz, já que da Bolívia e do Chile também teve que fugir ante os golpes militares e implantação de ditaduras nos dois países (com a derrubada dos governos democráticos e socialistas de Víctor Paz Estenssoro e Salvador Allende, respectivamente).

Ele me relatou detalhadamente como fugiu de BH, das agruras para chegar na Bolívia e para trazer esposa e seus sete filhos pequenos, depois a fuga para o Chile, onde criou uma repeitadíssima rede de oito livrarias especializada em ciências sociais, e depois a nova fuga para Paris, onde se tornou novamente livreiro em loja que se transformou em centro de convergência e interação dos exilados brasileiros e latino-americanos na Europa.

Mas tudo isso já foi devidamente e repetidamente publicado. Meu foco era outro e tinha a primeira pergunta no gatilho. Confortavelmente sentado no sofá, com uma xícara de café fumengante nas mãos, disparei de bate-pronto: “Zé Maria, a lista de militares que deram porrada em esquerdista é enorme, mas de esquerdistas que deram porrada em general só tem um nome: o seu! Como foi essa parada?”

“Caro, posso até te contar, mas minha biografia é muito mais que isso! Eu só reagi. Fiz o que qualquer um faria quando agredido. Não reduza sua matéria a esse episódio, nem a minha trajetória a essa passagem”, pediu ele.

“Ok”, respondi, “mas dar porrada em general não é pra qualquer um. Vamos falar disso, por favor…”

“Tá… Mas bota no meio do texto, no meio de outras passagens… Sou um lutador pela democracia, pelos oprimidos, fui exilado três vezes… Sou muito mais que isso…”

Zé, desculpe, mas essa passagem é saborosa demais para que ser desmerecida como você deseja. Então, o caso é o seguinte:

Ao final de 1961, em plena crise provocada pela renúncia do presidente Jânio Quadros e resistência a posse do vice, João Goulart, chega a Belo Horizonte, para comandar a ID4, maior unidade militar de Minas na época, o general João Punaro Bley, que havia sido interventor (governador nomeado) do Espírito Santo durante a ditadura Vargas.

Militar dado a política, vai à Associação Comercial de Minas e faz palestra sobre a ‘ameaça comunista’ representada pela posse de Jango e conclamando aos ‘democratas’ à resistência ao ‘perigo vermelho’.

“Aí nos quisemos saber quem era esse cidadão e descobrimos tudo que ele fez como interventor do Estado Novo no Espírito Santo, as maiores violências, criou campo de concentração para adversários políticos presos, obrigava jornalista a engolir jornal, tinha um rebenque especial para agredir jornalista”, lembra Zé Maria. E a manchete do Binômio foi: ‘Funaro Blay, democrata hoje, fascista ontem’. Não poderia dar boa coisa. Zé Maria lembra o entrevero:

“Isso foi na segunda e na quarta ele apareceu para falar comigo. Ele levava numa mão o jornal e na outra o barrete militar. Queria saber quem escreveu ‘aquela merda’ contra ele. Eu disse que era responsável por tudo que saia no jornal. Então ele me pegou pelo colarinho e eu reagi. Mar eu era judoca e o general levou uma desvantagem enorme. Saiu com um olho fechado, um hematoma enorme na boca e a roupa toda rebentada. Mas continuava ameaçando, dizendo que não ia ficar assim. E não ficou mesmo. Três horas depois, 200 homens do exército e da aeronáutica, comandados por seus respectivos comandantes, destruíram tudo”.

Zé Maria teve que fugir da cidade, disfarçado com uma batina do Padre Lage, o ‘padre vermelho’, que o acolheu (batina que até hoje está guardada do seu armário). Foi para Poços de Caldas, onde tinha parentes, e de lá para São Paulo, disfarçado de vendedor de café. Até que as coisas se acalmassem com a posse de Jango e ele pudesse voltar a BH e reestruturar o Binômio.

Dizer o que de quem deu porrada num general fascista em plena fase golpista? Zé, você é o cara!