A era Lacerda e a cidade que não se move

Uma cidade estagnada, um retrato da mobilidade pós Lacerda


Por Bárbara Ferreira

 

Foto: Rafael Mendonça

Odiado por muitos, adorado por quase ninguém, mas apoiado pela maioria dos belo-horizontinos, que o elegeu e reelegeu prefeito da cidade, Marcio Lacerda continua sendo uma incógnita. Seu longo e polêmico reinado à frente da Prefeitura de BH foi marcado pelo maior conflito territorial urbano do país, pela tarifa de ônibus mais cara do mundo, pela queda de um viaduto e a construção de uma série de outros, pelo surgimento espontâneo de uma praia no concreto da Praça da Estação e pelo ressurgimento do Carnaval de luta. Um empresário estreante na política, que hoje trabalha para ser o próximo governador de Minas.

Lacerda é filiado ao Partido Socialista (PSB) e parecia ser de esquerda até comprar briga com os movimentos sociais. Apesar dos prêmios que a Prefeitura recebeu em sua gestão de modelo em sustentabilidade e de meio ambiente, quando se fala em mobilidade e em políticas urbanas, Belo Horizonte continuou a perpetuar a velha política dos empreendimentos rodoviaristas e a dinâmica de uma cidade que afasta as pessoas.

Lacerda conflitou com a ocupação da região do Isidoro, cortou qualquer canal de diálogo com os movimentos sociais e encerrou sob sete chaves a caixa-preta dos transportes.

Foram anos de consecutivos aumentos das passagens de ônibus, em percentuais muito acima da inflação. Segundo dados da pesquisa Origem e Destino, que analisou o sistema de mobilidade urbana da cidade entre os anos de 2002 e 2012, a curva do aumento das tarifas sempre foi superior à inflação, e a distância entre os dois só aumentou entre os anos. Ao mesmo tempo, o estudo mostra que houve uma queda significativa nos deslocamentos feitos por transporte coletivo.

“Vemos atualmente que há uma desconexão entre o discurso e a prática. Houve uma tentativa de vender uma gestão moderna, mas o que vemos na prática ainda é uma cidade excludente, que beneficia automóveis e sem nenhuma política de áreas verdes ou de recuperação dos cursos d’água. Podemos ver isso ao analisar as verbas de mobilidade, onde 90% do orçamento foi para o alargamento de vias e construção de viadutos”, analisa o urbanista Roberto Andrés.

Um exemplo do que fala o especialista são os investimentos com programas como o Corta Caminho, que tem em seu escopo principal a construção de vias de ligação pela cidade. Se observarmos o orçamento previsto para o primeiro quadrimestre de 2016, apenas 5,9% foi destinado à área de mobilidade. De toda a verba prevista para a mobilidade em 2016, apenas 6,8% foi destinado ao investimento prioritário em transporte público, e 1,4% para o transporte seguro e sustentável. Enquanto isso, apenas o programa Corta Caminho, corresponde a 27% de toda a verba orçada para a mobilidade nesse período.

Move

Umas das soluções encontradas pela última gestão para otimizar o sistema de transporte coletivo foi a implantação do Move – sistema de ônibus rápido, comumente chamado de BRT. Como uma das promessas para a Copa do Mundo, foi uma prioridade, mas houve aumento no tempo de deslocamento dos usuários, problemas com baldeação e a continuidade do aumento das tarifas, mesmo quando a expectativa era de um serviço que reduzisse os custos para as empresas de transporte.

“Foi uma solução que podemos chamar de muito meia boca. De fato, existem sistemas de BRT em outras cidades que funcionam de uma forma razoável – como em Curitiba e em Bogotá, na Colômbia – que chamamos de troncoalimentadores. Eles atravessam toda a cidade e nas estações saem ônibus pequenos que entram nos bairros. Aqui isso não acontece por vários motivos. Primeiro, porque o Move foi usado para a construção de viadutos e no mundo todo não existe sistema de BRT que tenha feito isso. Segundo, porque onde não houve duplicação de pista, não houve BRT”, explica Andrés.

No caso do Move, só é possível trocar de ônibus dentro das principais estações, que foram colocadas nas extremidades de cada linha. Nas estações ao longo dos trajetos, o usuário precisa desembarcar, caminhar em direção ao bairro, e assim pegar um outro veículo. Além disso, ainda segundo o urbanista, o custo de implantação foi de R$ 50 milhões por quilômetro, o que supera em mil vezes as pistas exclusivas de São Paulo, por exemplo.

Quem usa o novo modal ainda não vê vantagens, e gasta até mais tempo no trajeto. “Normalmente pego o 50, hoje que vou pegar o 51 porque fiz a feira aqui perto. Moro no Céu Azul e trabalho na Afonso Pena, em frente ao Palácio. Agora eu gasto mais tempo do que antes. Antes demorava muito porque o trânsito ficava muito agarrado. Hoje o Move é rápido. O que demora são as alimentadoras do bairro”, afirma a desenhista Michelle Santos, 43, que usa o sistema diariamente.

Uma avaliação feita em 2015 pelo Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP) aponta que o sistema trouxe agilidade para os corredores Antônio Carlos e Cristiano Machado. No entanto, apresentou falhas estruturais como a falta de integração e informação ao usuário. Dos seis itens considerados pela avaliação do ITDP, o corredor teve a pontuação máxima em apenas dois: planejamento e estações. Dentre os pontos negativos, o mais preocupante foi o acesso às integrações, em que o BRT belo-horizontino teve apenas metade dos pontos avaliados como positivos.

Viaduto

Também relacionado aos investimentos em mobilidade, foram construídos uma série de viadutos ao longo da avenida Pedro I, na região da Pampulha. Em 2014, durante os jogos da Copa do Mundo, houve a queda de um deles, o Batalha dos Guararapes, com o saldo de duas mortes, e que motivou a maior gafe, entre tantas, perpetrada pelo socialista. “Acidentes acontecem”, disse o ex-prefeito em sua primeira coletiva após o acidente.

O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) denunciou 11 pessoas, entre funcionários da Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap) e diretores e funcionários da Cowan e da Consol, pelos crimes de desabamento com morte e lesão corporal. Se condenados, os réus podem pegar até doze anos de prisão. As audiências ainda estão em andamento e até hoje não houve um desfecho. O viaduto foi implodido em seguida.

Roberto Andrés diz que o acidente acabou por virar uma marca simbólica da gestão Lacerda. “Não só pela queda, mas por mostrar que o viaduto não teria feito nenhuma diferença para o trânsito local. Ele é um retrato dessa gestão e da sua política de mobilidade. São obras mal feitas, que beneficiam construtoras e são absolutamente desnecessárias”, diz o urbanista, que é especialista na área de mobilidade.

A reportagem de O Beltrano entrou em contato com a assessoria do ex-prefeito, mas até o fechamento desta edição não houve resposta.