Cidadãos do mundo em BH

Imigrantes enfrentam do racismo à xenofobia no país da simpatia


Por Janaina Cunha
 
Laura Lopez
Foto: Bruno Queiróz

 

São inúmeros os fatores que motivam mulheres e homens a tomarem a difícil decisão de renunciar à própria terra, e a tudo o que lhes é essencialmente familiar, e imigrar: guerras, pobreza, catástrofes naturais, violência doméstica, perseguição política e religiosa, falta de perspectivas… Mas a despeito das razões, todas as histórias de imigração são marcadas pela resignificação profunda, nem sempre consciente, de que o território a que se pertence não necessariamente está restrito às fronteiras da nacionalidade.

Domingo passado, O Beltrano foi a um evento realizado pelo Cluster BH, em parceria com Centro Zanmi, na Casa Bernardi, no bairro Cidade Jardim, que reuniu algumas dezenas de imigrantes que moram em BH. Foram apresentados trabalhos de moda, arte e gastronomia, desenvolvidos por mulheres de países como Haiti, Colômbia, Senegal, Congo e Peru. A ideia era evidenciar o empoderamento feminino no mês do Dia Internacional da Mulher.

Conversamos com algumas dessas mulheres, que relataram que nem tudo é acolhida no país do samba, futebol, carnaval e aguda crise política e econômica. Apesar de apontarem muitos aspectos positivos no intercâmbio entre culturas, as imigrantes também iluminam nossa compreensão acerca da estrutura social excludente e dos preconceitos, disfarçados em gentileza no Brasil.

Segundo dados da Polícia Federal, mais de um milhão de pessoas são imigrantes regularizados no país. Em Belo Horizonte, de acordo com as estimativas do Centro Zanmi – Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados, pelo menos três mil estão estabelecidas de forma regular ou em processo de regularização. Para esses cidadãos do mundo, de todas as idades, deslocar significa reinventar-se a partir de um mergulho no desconhecido em que pouco a pouco se acomodam. Para eles, viver é imperativo, com ou sem a alternativa de regressar.

 
Gloria Elena
Foto: Bruno Queiróz

RELATOS

Colombiana de 26 anos de idade, Gloria Elena Zapata Cardone está radicada em Belo Horizonte desde junho de 2015. Ela desembarcou no país com seus dois filhos menores cinco meses depois da chegada de seu marido, Julian Eduardo. “Vim pela oportunidade de estudar e trabalhar, sendo mãe, sem que isso seja um problema. Nunca imaginei que seria possível viver no Brasil nem que seria recebida com tanta gentileza. A única coisa que me assusta é a maneira como as pessoas se comportam no trânsito”, diz.

De acordo com dados recentes da Polícia Federal, a Colômbia está em 7º lugar no ranking de presença de estrangeiros no país – incluindo visitantes e imigrantes. A lista é encabeçada por Bolívia, seguida por Estados Unidos, Haiti, Argentina, China e Portugal.

 

Marinela Herrera
Foto: Bruno Queiróz

 

“Mulher, independente e autônoma”, como se descreve, a artesã peruana Marinela Herrera conta que há 15 anos se “encantou” pelo Brasil. Idioma, costumes, comida, clima foram os atrativos que a fizeram ficar. Mas a subsistência tem sido para a artista um desafio diário, inclusive para a criação do filho Mateus, já adolescente. “Pelejo muito para me virar todos os dias. Moro de aluguel, não tenho carteira assinada e são muitas as dificuldades”. Seus trabalhos artesanais – tecidos à mão ou em tear – são um misto da tradição peruana com o que Marinela chama de “tendências” da cultura brasileira. “Gosto de valorizar essa idéia de fusão. Afinal, tudo faz parte de um processo de interação e troca”.

Também do Peru, a nutricionista Laura Lopez conta que saiu de Arequipa rumo a Minas Gerais há 10 anos com o propósito de ingressar em um curso de pós-graduação em gastronomia. Ela se deparou com uma realidade adversa, com mais dificuldades do que poderia imaginar, a começar pelas questões de moradia. Lidar com burocracias e rigidez nas relações contratuais, ela avalia, é um dos principais problemas enfrentados pelos imigrantes. “É muito constrangedor conseguir fiadores, pedir aos amigos para abrirem a vida deles com tantos detalhes. Isso quem faz é família e a gente acaba ficando numa situação bastante difícil”, diz. Por falta de orientação adequada, ela passou os três primeiros anos no país sem se regularizar, mas conseguiu colocar em dia a documentação em 2010, com anistia concedida pelo governo aos imigrantes.

“Se tudo der certo, pretendo me nacionalizar e continuar em Belo Horizonte. O clima de montanha e o jeito acolhedor do mineiro se parecem muito com os da minha cidade. Aqui, nunca me senti discriminada, diferente das experiências que tive no Rio de Janeiro e São Paulo”, afirma.

Estudante de Matemática da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais, Gracia Wanatu, de 25 anos, em 2012 deixou o Congo – país africano de língua francesa que enfrenta as conseqüências de severa guerra civil instaurada por disputas pelo poder político e monopólio do petróleo. Interessada no curso de graduação oferecido em diferentes países, escolheu o Brasil pela boa classificação na universidade mineira, segundo as pesquisas que ela realizou antes de deixar o continente africano. Gracia lembra que havia a possibilidade de se matricular na Índia, mas acredita que a escolha pelo Brasil foi acertada.

“É incrível como na faculdade as pessoas se preocupam com a gente. Colegas e professores prestam atenção até nas reações que tenho nas aulas, perguntam se estou compreendendo os conteúdos por causa da diferença do idioma. Essa gentileza me atrai”, diz a estudante, já bastante familiarizada com o português.

Há cinco anos em Minas Gerais, ela faz questão de lembrar a “sensação estranha” ao provar o tradicional pão de queijo mineiro. “Hoje eu gosto, mas não consigo esquecer o dia que experimentei pela primeira vez”, ela diz, bem humorada. A gastronomia, observa Gracia, é um ingrediente importante no processo de conciliação cultural necessária para viver em outro país. E concentra, em apenas um comentário, o que considera mais difícil no Brasil: “O jeito falso do brasileiro. Hoje as pessoas conversam com você, amanhã é como se não você existisse, não querem mais”.

Gracia Wanatu
Foto: Bruno Queiróz

 

RACISMO

Mulher negra de origem africana, Gracia tenta não enxergar o racismo, numa espécie de estratégia de sobrevivência no país. Nessa seara, a estudante prefere alimentar os sonhos de concluir a graduação, ainda neste ano, a ressaltar as incongruências do país em que negros e pardos representam cerca de 54% da população, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), aferidos em pesquisa de auto-declaração em 2015.

“Acontece sim, e em muitas situações. As pessoas, por exemplo, se surpreendem com o fato de eu estudar na UFMG, uma universidade pública respeitada. E questionam, como se eu não tivesse o direito de estar ali, porque muitas vezes eles, ou os filhos deles, tentaram, mas não conseguiram ingressar”. O racismo, ela diz, é algo que se percebe no olhar. “Muitos me tratam de uma maneira diferente quando me aproximo, mas não presto atenção. Para mim, é como se não existisse. Não deixo que o racismo interfira na minha vida para que não se sobreponha ao que eu sou”.

Estudante de Publicidade e Propaganda, também natural do Congo, Princess Kambilo, de 27 anos, acrescenta nota ainda mais perversa à discriminação racial no Brasil. “Quando passo, as pessoas seguram a bolsa, guardam o celular, olham de um jeito estranho. Mas se me ouvem falar e percebem que sou estrangeira, pelo meu sotaque, a reação se modifica. As pessoas se mostram mais receptivas por eu não ser uma negra brasileira, como se o negro estrangeiro fosse melhor que o daqui”, afirma a estudante, entre perplexa e indignada. “É um tipo de preconceito que magoa de várias formas. Isso eu não conhecia. No meu país todos somos negros. Não existe esse tipo de diferença entre nós”.

Para Olga, que prefere se identificar apenas pelo primeiro nome e não ser fotografada, o racismo “dói muito” e afeta a qualidade das relações sociais. “Somos pessoas do mesmo jeito e até a roupa que usamos faz sermos vistas de um modo estranho”, afirma.

Assim como Gracia Wanatu, Princess Kambilo, que está há seis anos em Belo Horizonte, elogia a qualidade do ensino universitário. “Temos acesso a muita leitura, estudamos história e sociedade com conteúdos que ultrapassam as disciplinas específicas. Com isso, aprendi muito mais do que esperava”, diz. Ela ressalta ainda a disponibilidade das pessoas no dia-a-dia. “No Congo, todos são muito fechados, de um modo geral. Certos assuntos são tratados só com parentes. Aqui não. As pessoas são mais livres e dispostas a escutar pensamentos diferentes”.

Muçulmana do Senegal, Ramatoulaye não encontrou dificuldade para dar continuidade à prática religiosa como exercia em seu país. Ela conta que freqüenta mesquita no bairro Mangabeiras e se sente respeitada. “Deus não faz os países, mas o mundo para que seja habitado por nós. Então, amo o Brasil como amo o Senegal, sem distinção”, afirma.

O EVENTO

Glória, Marinela, Laura, Gracia, Princess, Olga, Ramatoulaye e outras imigrantes de diferentes nacionalidades participaram, domingo passado, de evento realizado pelo Cluster BH em parceria com Centro Zanmi. A iniciativa uniu o conceito dos eventos de integração multiculturais do Cluster, realizado pela primeira vez em 2012, no Rio de Janeiro, com a proposta humanitária do Centro Zanmi.

Orientadora social e integrante da equipe de fundação do Zanmi, a pedagoga Luciana Pereira Lorenzi lembra que a instituição foi criada oficialmente em 2014, mas que presta serviços na cidade há pelo menos seis anos. Atuando em várias frentes de inserção, como geração de trabalho e renda, assistência social e jurídica, e desenvolvimento para a cidadania, ela ressalta a bilateralidade do relacionamento com os imigrantes.

“Eles chegam a um país diferente, na maioria das vezes em situações bem adversas, e precisam encontrar meios de se integrar a essa nova realidade. O apoio é necessário, inclusive para que se compreenda que os imigrantes também podem oferecer uma grande contribuição aos países que o recebem”, afirma a orientadora.

Luciana avalia que, mesmo com o intenso fluxo migratório, crescente e histórico, o Brasil persiste como um país racista, machista e xonófobo. “O que se diz internacionalmente é que estamos num lugar acolhedor, cheio de oportunidades. Mas existe uma grande diferença entre o imigrante europeu e os vindos de países africanos, por exemplo. A questão racial é preponderante quando se trata de migração”.

Neste sentido, ela considera prioritárias as iniciativas que impulsionem encaminhamento ao trabalho e ações de geração de renda, como o evento realizado em parceria com o Cluster BH. “Todas as demais dificuldades são secundárias ao considerarmos que o desemprego, a falta de acesso a recursos econômicos, deixa a pessoa em situação de vulnerabilidade extrema. Muitos não conseguem se estabelecer e deixam o país. Sem trabalho uma pessoa não existe”.

Os eventos também são essenciais para a integração social, abertura de possibilidades de relacionamento, facilita o processo de interação cultural, fortalece o binômio ensino-aprendizado e, deste modo, a renda adquirida se multiplica em termos de benefícios para o imigrante, segundo avalia a orientadora social.

Foto: Bruno Queiróz

ZANMI

O Centro Zanmi, que dispõe de uma equipe básica para prestação de serviços, e conta com apoio de colaboradores voluntários, oferece auxílio na tramitação de documentos, curso de português para estrangeiros, encaminhamento para acesso a benefícios sociais públicos nas áreas de saúde e educação. Há alguns anos, Luciana lembra, as escolas tinham muita dificuldade em receber os filhos de imigrantes, sobretudo nas periferias. “Havia questionamento inclusive sobre a capacidade de oferecer a vaga. Mas este é um problema que vem sendo superado porque as unidades escolares foram se adaptando a uma realidade com que elas também tem dificuldade de lidar”.

Entre as ações com foco na cidadania, Luciana Lorenzi destaca projeto que reúne mulheres para discutir autonomia, sororidade, saúde, direitos e acesso à cidade. “Alguns países são muito fechados e há questões que são de difícil compreensão não apenas os homens, mas também para as mulheres, como a Lei Maria da Penha. A reação deles muitas vezes é de espanto. É novo para eles saber que algo, que eles consideram de foro íntimo, como a violência doméstica, pode se tornar público. E que o agressor pode, inclusive, ser preso por isso”, diz a orientadora social.

A instituição, mantida pelos jesuítas, dispõe de banco de dados com cerca de dois mil assistidos e identifica que mais de 90% dos que solicitam apoio são do Haiti – ilha caribenha que, em 2010, teve sua capital, Porto Príncípe, devastada por terremoto que deixou centenas de milhares de mortos.

Com o propósito de atender aos imigrantes a partir de necessidades específicas, o Centro Zanmi recebe doações em dinheiro, importantes para a manutenção das atividades, e de roupas, alimentos, produtos de higiene e afins, que são distribuídos de forma dirigida. “A gente identifica a necessidade e encaminha para as pessoas, avaliando as necessidades declaradas. Esse método é mais trabalhoso, mas também mais eficaz”.

CENTRO ZANMI – Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados

Av. Amazonas, 641, 8º andar, Centro. Telefone: 3212-4577 / 99210-3434