Delas para elas

A pedido de O Beltrano, a livreira Simone Pessoa, da Ouvidor da Savassi, apresenta uma lista de dez obras escritas por mulheres para ler até o fim do ano


Por Joana Suarez

Simone Pessoa. Foto Joana Suarez

Simone Pessoa é daquelas livreiras peças raras. Quem a conhece faz logo amizade e quer voltar à livraria antes de terminar um livro para pegar novas indicações e inspiração. Ela fala com a propriedade de quem há quase 20 anos vive de ler, sentir e vender livros, de quem viaja o mundo pelas histórias escritas, mas quase nunca sai de Belo Horizonte. Assim que percebe o gosto do cliente, e isso para ela é fácil, Simone pincela comentários cheios de empolgação sobre detalhes da obra e as reações que a leitura provoca: “Esse (livro) é um beliscão na gente”, diz ela, e belisca o braço. “Com esse você leva um susto”, puxa o ar e leva a mão ao peito.

“Depois que eu descobri a Simone, venho aqui sempre. É muito interessante porque ela tem uma memória incrível. Eu leio um livro e daqui a um mês tenho que me esforçar para lembrar. Ela tem tudo guardado e diz: ‘esse acontece isso, esse tem essa pegada'”, diz a fisioterapeuta e comerciante Norian Faria, 58.

Quem puder ir à livraria Ouvidor, na Savassi, em Belo Horizonte, achará Simone lá todos os dias, sempre pronta para um bom papo literário. Não adianta tentar contato virtual com ela. Apesar de ter aderido ao Whastapp recentemente, ainda tem dificuldades para digitar na tela. Gosta mesmo é de papel e caneta – objeto este que ela se orgulha de nunca perder –, e brinca que as mensagens no celular são tão concisas e diretas que parecem orações poéticas. Também não é adepta dos ‘áudios do zap’. “Não gosto. A gente fala sem interlocutor, não tem ninguém para interromper nem responder, não tem diálogo, as pessoas falam sozinhas”, diz.

Uma obrigação lê-las

A reportagem de O Beltrano foi, então, pessoalmente, encomendar à nossa livreira favorita indicações de dez livros para quem está em busca de ler mulheres neste ano. Para essa amante defensora dos livros, o movimento de mulheres escritoras, que ganhou força nos últimos anos, vai bombar. “Sempre tivemos autoras, como Mary Shelley, que escreveu Frankenstein no século 18, mas elas não produziam tanto. Agora temos uma sequência de mulheres boas, com livros que ficam para o resto da vida”, afirma Simone.

Com garantia de suspiros e reflexões de Simone Pessoa, eis a lista abaixo. A dica é separar uma obra por mês para ler a partir de março, o Mês da Mulher, até dezembro.

Março

A Filha Perdida, de Elena Ferrante

Para começar logo com um beliscão. Foi com esse livro que Simone fez o gesto no braço para exprimir a narrativa forte de Elena Ferrante nessa obra. A autora italiana misteriosa, que usa esse pseudônimo, mas ninguém sabe quem é, tem outros livros que já estão fazendo sucesso entre as leitoras pelo mundo. Mas A Filha Perdida é o que a livreira mais gosta de indicar. Para ela, nessa obra a escritora já “pegou a mão” e proporciona uma leitura intensa ao narrar a história de uma mulher que, com as filhas crescidas, viaja sozinha para a praia onde confronta-se com sua vida e valores como a maternidade.

Orelhas

Simone também gosta de narrar os bastidores dos livros e autores, como quem conta uma fofoca literária. Mas ela não pesquisa na internet. Se informa pelas orelhas dos próprios livros e pelos jornais e periódicos literários, aos quais acrescenta seu imaginário particular. Em se tratando de Elena Ferrante, o mais novo babado é que ‘ela’ pode ser ‘ele’. “O endereço de correspondência dela é o mesmo de Domenico Starnone, um escritor italiano”, comenta Simone. O autor escreveu o livro Laços, que, segundo a Simone, é a versão dele como marido para Dias de Abandono (livro de Elena que fala de uma mulher trocada pela amante). Mas o palpite da livreira é que Domenico seja marido de Elena na vida real e que os dois escrevam juntos. “Tem partes nos livros (de Elena) que não tem como ter sido escrito por um homem. Quando ela fala da menstruação descendo, aquilo é muito feminino”, acredita. Resta às leitoras torcer para que Simone esteja certa e Elena seja mesmo essa mulher arrebatadora em palavras.

Abril

Mrs Dalloway, de Virginia Woolf

“Esse foi o último livro dela (Virginia). Ela estava com ele no bolso quando morreu. Colocou uma pedra no casaco para afundar e pulou no rio, no frio, imagina?!” Simone dá logo esse ingrediente intenso para te fazer querer ler o livro e explica: “Ela era solitária, sem mãe, tinha esquizofrenia, estava sempre deprimida”. E o livro, esclarece a livreira, é sobre uma mulher perdida às vésperas de se matar. “Mas não é triste, toda mulher adora ler”.

Virginia Woolf é também autora dos aclamados Orlando e Um Teto Todo Seu. Esse último traz uma seleção de trechos dos diários dela. A autora londrina suicidou-se em 1941, após anos de depressão, prestes a completar 60 anos.

Maio

A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha

Simone quis indicar para a terceira leitura uma estreante recifense, criada no Rio de Janeiro, que a livreira considera surpreendentemente boa. No seu primeiro romance, Martha narra uma história que se passa no começo do século XX. “Uma costureira, dona de casa invisível diante da organização do lar, mas muito assertiva, enquanto a irmã porra louca faz tudo errado. É uma lição de Brasil”, resume a livreira, que ressalta uma curiosidade: “Os homens estão adorando esse livro e nem toda mulher gosta, porque se sente retratada”.

Sobre a autora formada em jornalismo, Simone tece elogios ao jeito simples dela escrever, comparando-a com Elena Ferrante. “Tem um texto que flui. É uma história possível, que você vê que pode ter acontecido”. Nessa obra de estreia, Martha já conseguiu vender os direitos para o cinema e para mais de dez editoras estrangeiras. O livro foi reimpresso nos Estados Unidos dez dias depois de ter sido lançado e o NY Times publicou resenha positiva sobre ele recentemente.

Junho

A Vida Submarina, de Ana Martins Marques

Esse foi o primeiro livro de Ana Martins (de 2009). Ela é uma poetisa mineira nova, mas Simone já ousa apontá-la como a maior do país, depois de Cecília Meireles, e diz que a Vida Submarina é o seu livro mais encorpado. “Não temos nenhuma igual a ela. A menina começou a escrever com 30 e poucos anos. É genial demais, tudo fica pequeno perto dela”, opina a livreira. Premiada, Ana já está no terceiro livro. “Ela escreve pensando, é inteligente, eu gosto desse tipo”, elogia, e vai no fundo da livraria pegar o livro que está na promoção por R$ 10, mas custa a achá-lo e confessa que costuma esconder alguns para irem “pra mão certa”.

“A capacidade que ela tem de definir um objeto, uma circunstância, uma situação… ela descreve um copo d’água na mesa, o quarto. Quando você lê, pensa: ‘como eu não tinha visto isso sob essa mesma ótica'”, relata a livreira, enquanto pega o livro e abre para mostrar uma poesia. Simone fala com encantamento dos versos de Ana Martins: “Ela fala que o amor é uma batata quente que passa de uma mão para a outra”.

Julho

As Meninas, de Lygia Fagundes Telles

Foi depois de ler As Meninas que Simone começou a tomar chá. “Eu gosto de ler para descobrir coisas. A leituras marcam as fases da vida”. A livreira, que tem hoje 55 anos, lembra de ter lido esse romance aos 17 anos. Enquanto mostra sua capa com o desenho de três mulheres, tira a etiqueta de preço que tampava a gravura, e começa a contar: “A história se passa na ditadura. São três colegas de internato: uma paulista quatrocentona; uma militante do PCdoB, de cabelos encaracolados, com bolsa tiracolo; e uma barbie bonitinha, socialite, que já não era virgem, transava, mas estava esperando um marido. Tinha que arrumar um médico para recolocar o hímen para casar com um cara milionário, aí…”, interrompe antes que contasse o livro todo. “Vale a pena ler. É um registro de (19)60… É óooootimo”, afirma com entusiasmo.

Agosto

Tudo é rio, de Carla Madeira

Esse é o livro no qual você vai levar aquele susto que Simone falou. “Ele é muito bem escrito, tem um apelo sexual e dramático muito forte. É uma história de ciúmes, desejo, tudo muito erotizado”, revela a livreira sobre o romance que traz personagens femininos fortes, como uma mulher que quis ser prostituta porque gostava de sexo e deixava os homens loucos. A cliente fiel de Simone, Norian, faz questão de expor sua opinião sobre o romance de Carla: “É um livro de uma força grande, fala da diluição do preconceito por meio do amor”.

Também comerciante de livros na Ouvidor, Bruni Santiago, 28, é atriz e está seguindo os ensinamentos de Simone, interpretando os sentimentos que lê nos livros. Ela acrescenta que “Tudo é rio” lhe transmitiu a mensagem do perdão, “algo muito difícil, porque eu sou das vingativas”.

Carla é outra estreante, belo-horizontina, que fez Simone ficar de boca aberta com seu primeiro romance. Mas, segundo a livreira experiente, é uma obra que foi lapidada por muito tempo. “É daquele texto que tem várias frases pra tuitar, grafitar”, compara Simone.

A estreante mineira

Com tantos elogios ao seu primeiro romance, O Beltrano foi saber com a autora Carla Madeira como está sendo estrear nesse mercado literário tomado por boas mulheres: “Acho que as mulheres estão abrindo todos os caminhos. Chegar neste momento é de certa forma fazer parte dessa conquista. A literatura é um lugar onde as fronteiras são derrubadas”, afirma Carla. Ela diz estar vivendo a rica experiência de ver o que acontece com o livro quando ele deixa de ser do autor e passa a ser de quem o lê. A obra já vai para a terceira edição e esgotou rapidamente na livraria Ouvidor. “Estar na lista de livros indicados pela Simone é especial demais por ser o testemunho de quem conhece muito de literatura. Estou terminando meu segundo romance e confesso que está dando um baita frio na barriga”, contou Carla, redatora publicitária que estreou no mercado literário aos 53 anos, mas que desde menina gostava de escrever contos, peças de teatro, tudo “amarelando dentro das gavetas”.

Setembro

Vida Querida, de Alice Munro

Para setembro, quando a primavera se aproxima, Simone quis indicar um livro de contos e garante que Vida Querida, de Alice Munro, será uma leitura leve e gostosa. “As narrativas são muito boas, ela aborda amizade, solidão, família, muito conto de criança, com o olhar da criança para o mundo. É bonito e forte, porque é a realidade da criança americana, a formação da emoção, a escolaridade”, destrincha Simone, lembrando que Alice ganhou o Nobel de Literatura de 2013.

A Vida Querida é formada por contos que se assemelham a pequenos romances e traz quatro narrativas autobiográficas, as únicas publicadas pela autora, onde ela reflete sobre o ato de narrar, a ficção e os temas que dominam sua obra: memória, trauma, morte e vida.

Outubro

Frankenstein, de Mary Shelley

Para outubro, que tem Halloween, Simone, sem pensar nisso, escolheu a obra clássica Frankenstein, a qual nem todo mundo sabe que foi escrita por uma mulher no século 18 para o 19. “Poucas pessoas leram ele. Só sabem do quadrinho, do cinema, da história de terror. E o texto é encantador, você chora. É um dos livros mais bonitos que já li, todo escrito em forma de carta. Não é livro bobo não, é profundo”.

Esse clássico está nas indicações da livreira justamente para mostrar que as mulheres não escrevem apenas histórias de amor. Desde a muito se aventuram por outros estilos, e esta foi a primeira ficção científica. “É uma das coisas mais geniais, ela (Mary) era doidona”, complementa a livreira.

Novembro

A Convidada, de Simone de Beauvoir

Como não poderia faltar numa lista feminista, Simone de Beauvoir é leitura indispensável. A obra que Simone Pessoa mais gosta da sua xará é A Convidada, que a livreira leu aos 29 anos. “Eu gosto imenso desse livro”, diz. A autora não escreveu muita ficção, e este foi o primeiro livro e romance dela, de 1943. Mas é memorial. “É a história dela, com nomes diferentes. A protagonista é ela, professora de filosofia, mais jovem, que ao orientar uma menina entra para seu relacionamento íntimo. E o noivo dela tem um caso com a aluna. Isso aconteceu, foi a vida deles”, conta Simone, adiantando que a leitura faz a gente ficar com raiva do escritor Jean-Paul Sartre, companheiro da autora; e da aluna, “que é meio bipolar”, comenta.

Simone de Beauvoir é marcante pela discussão feminista que traz em sua obra. “O Segundo Sexo” é livro de doutrina, um ensaio sobre feminismo, mas muita gente já leu. Aí é chover no molhado”, diz Simone. O grande livro de Simone de Beauvoir é “Memórias de uma Moça Bem-comportada”, menciona a livreira, “e a aluna (de A Convidada) escreveu Memórias de uma Moça Mal-comportada. Parece que essa história foi a grande cisão na vida deles (Simone e Sartre)”.

Dezembro

A Odisséia de Penélope, de Margaret Atwood

Para encerrar a lista, Margaret Atwood, que ficou conhecida recentemente por conta da adaptação de seu livro, O Conto da Aia, para a série premiada The Handmaid’s Tale (com o enredo da criação de um regime totalitário que retira direitos das mulheres). Mas Simone indica A Odisséia de Penélope, que estava sendo vendido na livraria a R$ 10, na promoção. Foi o primeiro livro que a livreira conheceu dessa autora. “Sou apaixonada por ele. A Atwood é feminista demais, a personagem é um símbolo feminino, é a Eurídice (do livro de Martha Batalha), a mulher que tece, que espera o companheiro, que segura a casa”, descreve Simone fazendo relação entre as obras indicadas.

Esse romance de Atwood coloca Penélope em primeiro plano, a mesma personagem da Odisséia, de Homero, que ficava relegada a coadjuvante, aguardando Odisseu por 20 anos. “É a biografia de Penélope à espera dos homens”, aponta a livreira. A figura feminina criada por Atwood desmonta a mulher casta e fiel de Homero, em uma narrativa reflexiva e humorada.

P.S.: Mais uma, de brinde!

Sobre a Neblina, de Christiane Tassis

A dica dos dez livros terminou, mas Simone não se contentou: “coloca um P.S., assim no final”. Então vai mais uma indicação de brinde, porque a livreira precisava falar do livro Sobre a Neblina, de Christiane, um romance também sobre Belo Horizonte. “Eu costumo dizer que BH tem três narrativas para explicar a cidade: O Amanuense Belmiro, na década de 30; Encontro Marcado, em 50; e esse, agora”, elenca Simone. O romance de Christiane desenrola-se no edifício Niemeyer, na Praça da Liberdade. O personagem mora lá e vê a ex-namorada na praça com alguém. “Ele tem um câncer que afeta a memória, aí busca a mulher que ele mais gostou para que ela fale dele. Ele não sabe mais quem é. A namorada fica ressentida em ter que contar uma história de perda e compara a memória dele aos buracos da Serra do Curral”, detalha livreira.

Quer estender a leitura, junte-se ao grupo Delas

Mais do que ler mulheres, muitas estão querendo dialogar sobre as leituras, as impressões, as autoras, debater temas femininos e demandar o mercado editorial. Já existem vários grupos que se encontram para conversar sobre livros sugeridos mensalmente. O clube ‘Palavra de Mulher’ é um deles. Em fevereiro, elas falaram sobre “O que é lugar de fala?”, de Djamila Ribeiro. O primeiro encontro foi em julho de 2017, quando leram “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus.

A ideia surgiu dentro de uma turma de mulheres da faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Eu sabia que muitas delas eram leitoras e sentia falta de um espaço em que pudéssemos trocar ideia”, explicou Camila Braga, uma das organizadoras. Em Belo Horizonte, já existiam outras iniciativas, como o Leia Mulheres BH, mas Camila afirma que elas queriam criar algo mais próximo, com mais diálogo. “O primeiro encontro foi inesquecível. Muitas mulheres negras compareceram, mães e filhas, pessoas fora da Comunicação da UFMG, o que nos mostrou que o clube tinha potencial”, narra Camila. “Em ‘Outros Jeitos de Usar a Boca’, da poeta indiana Rupi Kaur, que traz poemas sobre amor, dor, ruptura e cura, nós compartilhamos muito sobre violências, abusos, dores, nossas histórias de sobrevivência, de alguma forma revividas em nós pelo livro”, lembra.

O plano agora é estimular a escrita crítica literária entre elas. Os encontros duram cerca de duas horas e meia, se dão em livrarias, cafés ou no Centro de Referência da Juventude, sempre às segundas, e é aberto a todas as pessoas, que tenham ou não lido a obra (escolhida por votação presencial ou online).