Eu fui ver o incêndio da Notre Dame

Marcela Xavier mora há 12 meses em Paris e foi ao local do incêndio que estremeceu mais de 800 anos de história, Marcela conta com exclusividade a O Beltrano como foi esse dia


Por Marcela Xavier (texto, fotos e vídeos)

Marcela Xavier

Quando as fotos das chamas na catedral de Notre Dame se alastraram nas redes sociais eu estava a caminho de casa. Faz doze meses que Paris é onde eu chamo de lar. Naquele momento, bombardeada por imagens e sem muitas informações, decidi desviar do meu caminho e pegar a Linha 4 em direção à tragédia.

Hesitei ao tomar a decisão de abandonar minhas tarefas mundanas de segunda à noite para ir presenciar uma cena de tristeza, senti que seria uma indiscrição. Mas Paris é uma cidade que pertence a todos em que nela se encontram – locais, turistas, imigrantes, estudantes e artistas de passagem. Todos esses grupos estavam presentes no endereço 4, Rue Saint-Julien le Pauvre.

A polícia estabeleceu um perímetro de segurança para evitar que as pessoas chegassem perto das margens do rio Sena, atraindo algumas centenas de pessoas para a pequena ruela atrás da icônica livraria Shakespeare and Company. Foram muitas voltas até encontrar esse lugar, um dos poucos que não estavam cercados com fita de segurança e de onde era possível ver a catedral de Notre Dame inteira.

Marcela Xavier

A igreja, que começou a ser construída em 1163, é referência da arquitetura gótica francesa e é listada como patrimônio da humanidade pela Unesco. Ela foi palco de acontecimentos históricos, ponto de encontro de figuras igualmente memoráveis e residência de alguns dos objetos mais sagrados para a cultura cristã. A coroação de Napoleão em 1804 e a Missa de Réquiem para Charles de Gaulle, com a presença de cerca de 80 chefes de Estado em 1970, foram alguns. É um motivo de orgulho nacional e homenagem à padroeira de Paris, e pode ser vista de diferentes pontos da cidade

Para muitos, Notre Dame vive no imaginário através da literatura e do cinema, é a realização de um sonho depois de uma viagem planejada por meses ou até anos, ponto de encontro entre amigos que não se veem há anos. Para mim normalmente é um lugar no meio do caminho que me faz saborear a boa fortuna de viver em uma cidade feita de arte. É desoladora a ideia de que possa desaparecer da noite para o dia.

No fundo da multidão estavam os curiosos apenas de passagem, pessoas tentando tirar fotos distantes por cima do mar de cabeças que preenchiam o caminho estreito à frente, gente que só queria dar uma espiada. Ninguém parecia se importar muito enquanto eu tentava abrir caminho até a margem do perímetro. Estávamos movidos pela mesmo curiosidade que, embora solene, era também um pouco mórbida e voyeurística.

Marcela Xavier

O ímpeto de testemunhar tragédias é algo que todos temos em comum. Fazemos isso diariamente ao consumir notícias de acidentes, crimes violentos, quando presenciamos um acidente no trânsito e diminuímos a velocidade para espiar o trabalho dos socorristas, ou até mesmo quando nos sujeitamos indignados às barbaridades transmitidas ao vivo direto da casa do BBB. Isso não faz de nós pessoas horríveis. O confronto com o desastre desafia a nossa noção de bem estar. Ao tomar consciência da realidade quando ela é sombria, somos capazes de reconhecer os aspectos obscuros da nossa existência, tal como ela pode ser. Para Carl Jung, enfrentar a sombra é “um remédio amargo e necessário”.

O céu ainda estava claro às 20h, uma hora depois que o incêndio já havia começado. Algumas pessoas cantavam hinos em um espaço enquanto outras filmavam ou faziam transmissões ao vivo no Facebook, mais à frente. Quem conversava o fazia sussurrando e uma mulher chorava em silêncio. Mesmo do outro lado do rio era possível ouvir o barulho das mangueiras que tentavam controlar o incêndio. Quando o fogo terminou de destruir completamente o que restava do pináculo e as chamas atingiram a impressionante altura original da estrutura, alguns poucos soltaram suspiros acompanhados de “oh là là” e “putain!”.

Depois de duas horas nesse estado coletivo de estupor, não percebi que as quatro ou cinco pessoas que cantavam a Ave Maria mais cedo se transformaram em um coral de algumas dezenas. A chegada da imprensa e seus equipamentos de luz – que a essa altura chamavam mais atenção que as chamas – foi o que me trouxe para a realidade. Veículos do mundo todo queriam imagens dos devotos e da cena, até então comovente, que se desenrolava ali. Demonstrações semelhantes ocorreram nos entornos da catedral e foram registradas também.

O caminho de volta não foi tão tumultuado e quanto mais eu andava, mais as coisas voltavam a parecer normais. Ainda havia turistas comendo kebab e outros bebendo vinho em estabelecimentos duvidosos, pessoas com roupa de academia e casais de mãos dadas andando muito devagar. O trajeto de metrô pareceu durar horas e eu lembrei que esqueci de jantar.

*Essa é uma versão atualizada de um artigo publicado originalmente no dia 17/04/2019 às 15:45