Garçons


Por Flávio de Castro

O Souza falava, ou pelo menos fingia falar muito bem, três idiomas. Quando eu pedia molho inglês ele me corrigia, impecável na pronúncia: é molho worcestershire. Ele sabia tudo de farra, de noite, de bebida e comida. Morava sozinho e fazia banquetes para os amigos nas tardes de segunda-feira, folga universal dos garçons.

No fim da noite, Sousa bebia elegantemente na companhia dos maiores e lendários boêmios da cidade, escutando seus lamentos e bravatas com atenção e cordialidade. Trabalhando, era um poeta: atendia bem a todos, olhando no doce dos teus olhos, como quem desejasse te dar a lua de presente.

Versava sobre vinhos, aromas, temperaturas e combinações, e isso sob um pequeno detalhe: em 2006 não havia esse enxame besta de cervejas artesanais nos bares (com gosto de spray de própolis e que custam 30 reais), muito menos enólogos recém formados em excursões a Paris ou Santiago.

Souza trabalhou em navios e era disputado pelos donos dos bares da cidade, e era ele próprio quem decidia onde e quando trabalhar. Nunca vi garçom mais nobre e afável, tampouco alguém que se sentisse melhor quando acertava o gosto do freguês e garantia que a pândega fosse farta, honesta e eficiente. Sem milonga: Souza adivinhava minha sede, minha euforia, minha tristeza e sabia muito bem o que fazer nestes lampejos do devir.

O outro era o Cabeça, cujo apelido se explica a si mesmo. Versado em psicanálise, direito penal, filosofia, literatura, mecânica de automóveis, contravenção, engenharia civil, nutrição e antropologia, dava conselhos aos bebuns que esperavam horas para pegar uma mesa na sua praça. Cabeça já me ajudou em pés-na-bunda, demissões, tragédias, vitórias, guerras, conquistas, glórias e pasmaceiras. Como eu ganhava bem naquela época e vivia muito só, chegava ao bar e perguntava:

– Do que vamos hoje, Cabeça?

Ele lia minha alma e segundas e terceiras intenções. Tinha dia que servia um drinque pra lavar minha escadaria, um chopp na pressão pra adentrar a noite ou mesmo uma cachaça amarela pra levantar poeira. Todavia em algumas vezes trazia um sanduíche de frango com azeitona preta e com muito carinho me dizia:

– Hoje não, meu amigo, hoje não é dia de te ver beber. É melhor pegar uma xepa e ir pra casa, que hoje a noite está escura demais.

Souza, Cabeça, cavalheiros galantes das minhas noites imorais. Das minhas noites imortais.

Hoje, em 2018, os garçons são jovens, tatuados e descolados. Tratam moças belas com devoção e são blasés com os demais. Dançam ao som do DJ e deixam os fregueses esperando. Não sabem do que acontece fora do balcão e muito menos dentro do freezer. Desconhecem a Noite, noite com N maiúsculo:  “Ó Nix flamea mia!”, conforme versou um certo boêmio latino.

Os garçons daquele bar da rua Montes Claros são universitários que gostam de aparecer mais do que joelho de escoteiro, mais que umbigo de vedete. Tropeçam na deselegância e na própria juventude renitente. Acreditam em “gente bonita” que papagaia asneiras estrangeiras, drinques da moda e seduzem as damas da noite para disfarçar a volta larga da própria solidão.

O tempo passa e a gente dentro dele, já escreveu Campos de Carvalho. Nostalgia não vira, eu bem que sei. Sigamos em frente. Só espero que, no inferno a que pertenço, o diabo me reserve uma mesa de frente pro fogo e que Sousa, mais o Cabeça, venham me sugerir o gosto eterno de todos os meus pecados.

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Conto-reportagem

Flávio de Castro

Poeta, professor de literatura e funcionário público de si mesmo.