Golpe no debate de gênero

Vereadores da bancada cristã fazem manobra para mudar a 'Constituição Municipal' sobre educação e identidade de gênero. Ministério Público aponta inconstitucionalidade na iniciativa


Por Lucas Simões

Foto: Rafael Aguiar – CMBH

O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e o Ministério Público Federal (MPF) se manifestaram contrários à proposta de emenda à Lei Orgânica do Município (Pelo 03/2017), que pretende proibir a tramitação ou discussão de projetos relacionados a identidade de gênero na Câmara Municipal de Belo Horizonte. Em audiência pública realizada nesta quinta-feira (05/02), na Câmara Municipal, MP e MPF informaram que vão tomar medidas judiciais necessárias, caso a proposta seja aprovada em plenário.

Assinada por 14 vereadores, a maioria deles pertencente à autointitulada bancada cristã, a Pelo 03/17 acrescenta um dispositivo à constituição municipal, no parágrafo único do Artigo 158, que dispõe especificamente sobre a educação pré-escolar e do ensino de primeiro e segundo graus na cidade. O dispositivo abre brecha para determinar a supressão do termos “gênero” e “orientação sexual” em todos os projetos tramitados na Câmara.

Parte do texto diz que “não será objeto de deliberação qualquer proposição legislativa que tenha por objeto a regulamentação de política de ensino, currículo escolar, disciplinas obrigatórias, ou mesmo de forma complementar ou facultativa que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo gênero ou orientação sexual”.

O procurador da república Edmundo Antônio Dias Netto Júnior, da Procuradoria dos Diretos do Cidadão do MPF, analisa a Pelo 03/2017 como uma forma de “banir a palavra gênero do glossário da Câmara Municipal”. Ele fez um paralelo entre a proposta de emenda à Lei Orgânica e o Projeto de Lei 274/2017, que pretendia instituir o Escola Sem Partido no município e foi considerado inconstitucional pelo MPF, em decisão do mesmo promotor Edmundo Antônio.

“Eu cheguei a expedir vários ofícios à presidência da Câmara Municipal e à secretaria de educação, no sentido de que o STF já considerava inconstitucional o projeto do Escola Sem Partido. Por causa disso, eu e meus colegas do Direitos do Cidadão sofremos vários ataques da Associação Escola Sem Partido. Ataques formais. Essa proposta de emenda à Lei Orgânica, que surge agora nesta casa legislativa, é uma continuidade da ideia do Escola Sem Partido, que já foi considerada inconstitucional”, disse o promotor.

Ele ressaltou que a redação da Pelo 03/2017 “é, por si só, violadora dos direitos e garantias individuais”, contrariando diretamente o Artigo 60, parágrafo 4, inciso 4, da Constituição Federal, que estabelece que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais”. Além disso, segundo o promotor, a proposta de emenda à Lei Orgânica ainda fere as diretrizes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuja jurisdição o Brasil se submete desde 2002.

“Em momento algum essa casa legislativa pode passar por cima dos direitos e garantias individuais, questões asseguradas na Constituição e na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Queiram todas que essa proposta de emenda à Lei Orgânica não seja aprovada. Mas, se for, dentro da plena liberdade de deliberação do poder legislativo, nós confiamos que o poder judiciário terá todos os recursos adequados para dar uma resposta em garantia dos direitos previstos na Constituição”, defendeu Edmundo.

Esta é a resposta que o MPMG enviou à Câmara Municipal. Segundo Daniela Yokoyama, promotora de Justiça da Coordenadoria Estadual de Defesa da Educação (Proeduc), presente na audiência pública, o órgão protocolou nesta quinta-feira um relatório técnico recomendando a não aprovação da Pelo 03/2017.

Foto: Rafael Aguiar – CMBH

“Apesar do Ministério Público não fazer análises de controle de constitucionalidade de projetos de lei, nós nos antecipamos e solicitamos ao Controle de Constitucionalidade do MPMG uma análise deste projeto. E há duas inconstitucionalidades graves. Uma é formal, que vem pelo cerceamento do processo legislativo, porque fere o trabalho dos parlamentares ao cercear que determinadas palavras, como gênero e orientação sexual, não possam estar presentes em projetos de lei. A segunda é material, diz respeito ao objeto da proposta de emenda à Lei Orgânica. Por que discutir as questões de gênero, principalmente na educação, é tratar de um assunto que está no cerne da proteção dos direitos humanos”, disse Daniela.

De acordo com o regimento da Câmara Municipal, alterações na Lei Orgânica do Município (LOMBH), como a Pelo 03/17, devem ser votadas em dois turnos, com intervalo de dez dias. O próximo passo é a análise da proposta por uma Comissão Especial presidida pelo vereador Fernando Borja (PR), um dos principais apoiadores da proposta. Só depois da análise, o projeto vai à Plenário. Para se aprovada, a Pelo 03/2017 precisa de dois terços dos parlamentares, ou seja, 28 votos.

Favoráveis a abolir o debate sobre identidade de gênero na Câmara Municipal, assinam a redação da Pelo 03/17 os seguintes vereadores: Jair Di Gregório (PP); Autair Gomes (PSDC); Carlos Henrique (PMN); Cláudio da Drogaria Duarte (PMN); Eduardo da Ambulância (Podemos); Jorge Santos (PRB); Marilda Portela (PRB); Orlei (Avante); Osvaldo Lopes (PHS); Pedrão do Depósito (PPS); Preto (DEM); Reinaldo Gomes (PMDB); Wellington Magalhães (Podemos); e Wesley Autoescola (PHS).