Insurgências ontem e hoje

Mostra 68 e Depois conecta os cenários sociopolíticos do Brasil e do mundo, no passado e no presente


Por Petra Fantini

Publicado em 30/05/2018

reprodução

A passagem dos meses de maio e junho de 2018 marcam dois grandes momentos na história mundial: os 50 anos das manifestações operárias europeias de Maio de 1968 e os cinco anos das chamadas Jornadas de Junho no Brasil. Esses cenários históricos e suas confluências na atualidade serão discutidas de 30 de maio a 3 junho durante a Mostra 68 e Depois, exibida no Cine Humberto Mauro, no Palácio das Artes.

A programação conta com 27 filmes contemporâneos e históricos, entre curtas e longas, que mapeiam gestos de resistência de militantes, ativistas, cineastas e artistas. A curadoria foi feita pela coordenadora do grupo de pesquisa Indisciplinar UFMG e do projeto de extensão Cartografia das Lutas Territoriais Natacha Rena e seu filho Pedro, graduando em Letras e pesquisador da Iniciação Científica Narrativas de Violência: O Brasil de Perto e de Dentro.

A Mostra 68 e Depois surgiu inspirada em debates feitos no Cartografia das Lutas, projeto coordenado pela professora Marcela Brandão que analisa movimentos sociais contemporâneos e é vinculado ao grupo de pesquisa Indisciplinar. Segundo Natacha, o Indisciplinar tem sido um agente importante nas disputas urbanas contra os avanços do urbanismo neoliberal desde 2013 em Belo Horizonte. “Estamos tentando ampliar o leque de estudos sobre as insurgências urbanas, sistematizando e aprofundando na temática das lutas e, agora, estamos traçando o debate a partir do cinema”, explica a pesquisadora.

Coordenada pelos professores Gustavo Ribeiro, da Faculdade de Letras, e Frederico Canuto, da Escola de Arquitetura, ambos da UFMG, a Iniciação Científica também contribui para a Mostra. O Narrativas de Violência pesquisa vídeos e filmes sobre importantes questões brasileiras contemporâneas, realizados por agentes internos às lutas políticas e sociais. O filme No Intenso Agora (2017) de João Moreira Salles, exemplifica Pedro, propõe um resgate histórico e elabora um pensamento sobre as imagens de arquivo dos acontecimentos de 68 e é também uma reflexão sobre o Brasil do presente, após as Jornadas de Junho de 2013.

A intenção dos idealizadores é que o seminário possa reunir pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, assim como realizadores e militantes, em um espaço onde a teoria dialogue com a prática e vice-versa. Personagens diretamente ligados aos acontecimentos políticos atuais e passados conduzirão os debates, como o secretário municipal de Cultura Juca Ferreira, que era presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) em 1968, ano em que o Ato Institucional 5 enrijeceu a repressão da ditadura e culminou no exílio do então líder estudantil.

O encerramento, por sua vez, conta com a presença da atual presidenta da Ubes, a estudante secundarista Bruna Helena, junto à ex-presidenta da União Nacional dos Estudantes (UNE) Moara Saboia. Elas debaterão o filme Escolas em luta (2017), que retrata ocupações estudantis realizadas em São Paulo no ano de 2016 contra as políticas do governo de Geraldo Alckmin (PSDB). A obra, diz Pedro, “demonstra a força da juventude e das resistências lideradas por mulheres”.

O Brasil e o mundo

Na visão de Pedro, é possível traçar um paralelo entre o golpe de 1964, que instalou a ditadura, e o momento político brasileiro em que vivemos agora. “São dois períodos na história do país nos quais houve a passagem de uma época de esperança e otimismo para outra de desesperança e melancolia”, analisa o estudante. De acordo com Pedro, o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff “instalou uma série de retrocessos sociais, econômicos e políticos que vinham sendo conquistados no país e isto é um tema importante a ser debatido na Mostra”.

O curta-metragem Lígia (2017), do renomado artista plástico Nuno Ramos, explicita bem esse comparativo histórico. Na obra, idealizada para ser exibida em loop no site aarea.co todas as noites durante o Jornal Nacional, Nuno faz uma colagem com trechos dos programas em que William Bonner e Renata Vasconcellos narram a escalada do impeachment para fazer com que os apresentadores cantem a música Lígia de Tom Jobim, escrita em 1972, em um dos períodos mais duros da ditadura.

A mostra está interessada também em pensar o modo como os artistas reagiram ao golpe de 64 no tropicalismo, por exemplo, e o modo como os artistas e os ativistas contemporâneos reagem à escalada conservadora. “Como a arte interpretava e intervia na política do país da época? Como a arte atua hoje em dia em um país que está inserido, não mais um regime autoritário, mas em uma sociedade de controle e uma democracia dissimulada?”, indaga Pedro.

Natacha destaca que os levantes e insurgências em Maio de 68 na França, assim como as manifestações tropicalistas no Brasil, já propunham um novo caráter estético para as lutas urbanas que fizeram das cidades palco das revoltas. Isso também se dá nas manifestações políticas a partir de 2013, continua a pesquisadora, nas quais a cidade além de palco das revoltas é também o motivo das mesmas. A Mostra não dá ênfase à Guerra Fria, mas os curadores consideram que a disputa entre grandes blocos políticos mundiais permanece presente, só que em um patamar mais elevado.

“Hoje, os conflitos entre os blocos ocidentais e o oriental, Eurásia, estão envolvidos em um conjunto de guerras dispersas”, diz Natacha. Ela considera, por exemplo, que o avanço do Mercosul e dos Brics nos governos Lula e Dilma teriam causado o contra-ataque das forças ocidentais para que a América Latina não ampliasse seu alinhamento político econômico com a Eurásia. “Mas este tema é pouquíssimo debatido. A geopolítica é quase um tabu e quando alguém quer discutir sob esses parâmetros por aqui é acusado de produzir teoria da conspiração”, lamenta.

A pesquisadora considera que países como China, Rússia, Irã e Turquia ameaçam fortemente a hegemonia dos capitalismos ocidentais imperialistas. Esse debate pode ser trazido de forma interessante para a Mostra em reflexões sobre como estes blocos de poder geopolíticos atuaram no país para derrubar Dilma e suas políticas anti-cíclicas e como as empresas transnacionais estão atuando no processo de desnacionalização de nossas empresas, públicas ou privadas.

 

A falta de discussão sobre geopolítica, diz Natacha, faz com que o debate gire em torno da política nacional, desvinculando impeachment de Dilma de interesses internacionais nas riquezas do país, “como é o caso evidente do que está ocorrendo agora com a crise nos preços do petróleo para atender interesses de acionistas internacionais, e, ao mesmo tempo, provocar queda no valor das ações da Petrobrás. Está muito claro que o sucateamento da empresa está diretamente relacionado com a intenção de privatizar e a desnacionalizar essa empresa criada brasileira”, afirma.

A pesquisadora também lembra das disputas narrativas durante as greves operárias francesas de 1968, em sua maioria nas empresas automobilísticas. A juventude burguesa dos liceus e universidades, esquerdistas e anarquistas, antagonizava com o Partido Comunista e os sindicatos da esquerda clássica, o que gerou grandes disputas e o surgimento da Nova Esquerda. O Brasil viveu algo semelhante em junho de 2013, durante o processo de fortes críticas esquerdistas ao PT e o início do enfraquecimento do governo Dilma.

Era um momento de alta empregabilidade e política econômica anticíclica com medidas radicais, analisa a pesquisadora, como a baixa da taxa de juros de 14% para 7% em maio de 2013, um mês antes das Jornadas. “Pra mim esse é um tema emblemático. Economia, forças internacionais/geopolíticas e insurgências estão sempre conectadas”, diz Natacha. Para a curadora a história se encontra em aberto e muitas conexões estão no ar, à espera de atualizações e agenciamentos.

O cinema político brasileiro

Pedro nota que diversos filmes da Mostra 68 e Depois lidam com materiais de arquivos históricos, em que há um duplo gesto político das imagens: de um lado, a urgência para registrar o presente como um momento histórico intenso, do ponto de vista interno às lutas de esquerda; e, por outro lado, a necessidade de narrar, articular e dar sentido a essas imagens para estabelecer uma memória e uma narrativa contra-hegemônica. Isso é visto fortemente principalmente nas obras sobre 1968, como O fundo do ar é vermelho (1977) e em Morrer aos 30 anos (1982).

O filme da professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Anita Leandro, Retratos de identificação (2014), se apropria e ressignifica as imagens de arquivo da ditadura brasileira que retratam a tortura dos militantes de esquerda para realizar um documentário histórico crítico ao período. “Importante lembrar que as imagens de Dilma poderiam estar presentes no documentário de Leandro”, ressalta Pedro.

Após o impeachment, filmes que articulam a história recente do país como o Operações de garantia da lei e da ordem (2017), Escolas em luta (2017) e a série Desde de Junho (2018), organizam materiais de arquivo captados por dispositivos amadores, como câmeras de celular, por uma grande pluralidade de pontos de vista. Pedro considera um desafio organizar esse material, pois nunca se sabe as intenções dos discursos dos manifestantes que capturaram as imagens, que poderiam ser a favor ou contra o impeachment.

Já os vídeos da plataforma Contra-golpe (2017) e o filme Allepow War Machine (2018), de Pedro Paulo Rocha, assim como o já citado Lígia, finaliza Pedro, “apresentam intervenções nas imagens da mídia, do poder, dos inimigos e do espetáculo com o objetivo de subverter a falácia desses discursos opressores”.

SERVIÇO

Mostra 68 e Depois

Local: Cine Humberto Mauro – Palácio das Artes

Av. Afonso Pena, 1.537

Data: 30 de maio a 3 de junho

Programação: https://goo.gl/Kgkv82

Entrada gratuita

Informações para o público: (31) 3236-7400