O financiamento das ocupações urbanas

Contribuições das famílias são única alternativa de sobrevivência dos movimentos de sem teto


Por Petra Fantini (texto e fotos)

Publicado em 03/05/2018

Para além das mortes, desabrigo e demais efeitos diretos do incêndio e desabamento do Edifício Wilton Paes de Almeida, ocupado desde 2014 no Centro de São Paulo, a tragédia acabou por insuflar jornalistas e colunistas conservadores contra os movimentos de defesa dos ‘sem teto’. A ‘descoberta’ de que moradores ‘pagavam aluguel’ no edifício do Largo do Paissandu serviu de base para criticas severas à organização e ao financiamento dos movimentos coletivos, feitas de forma leviana e generalista. O colunista da Folha de S.Paulo Leandro Narloch chegou a comparar a organização dos ‘sem teto’ às milícias que loteiam e vendem terrenos invadidos na Zona Oeste do Rio.

No mesmo dia da tragédia, em 1º de maio, o Estado de S.Paulo já trazia a ‘denúncia’ de que moradores pagariam ‘aluguel’ para morar no prédio, que tinha porteiro, segurança e faxineiro. Os valores girariam entre R$ 250 e R$ 500, segundo o jornal. Mais tarde, moradores e integrantes do Movimento Luta Social Por Moradia (MLSM), que organizava a ocupação, esclareceram que a quantia, de R$ 210 mensais por família, era cobrada para custear a manutenção e serviços da ocupação.

O que o MLSM chamou de “contribuição” é de fato polêmica, mas de acordo com lideranças dos movimentos de ‘sem teto’ em Belo Horizonte, não pode ser utilizada para criminalizar os movimentos, já que os canais de financiamento são escassos e o auto-financiamento é, muitas vezes, a única alternativa de sobrevivência das ocupações. No prédio que ruiu em São Paulo, segurança e limpeza ficavam a cargo de um grupo de moradores que recebiam um pequeno salário para tal.

“Não vou condenar um movimento que chegou a esse grau de organização para pagar pessoas para ficar 24 horas na portaria”, analisa Leonardo Péricles, da sede mineira do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). “É um papel importante, inclusive para garantir a segurança das famílias. Se for em comum acordo, aprovado pelas famílias, é certo fazer”, diz.

Mas nem todas as ocupações de Belo Horizonte pagam por tais serviços. Na maior parte delas, as tarefas diárias se dão por sistema revezamento voluntário entre os moradores, mas existem outros gastos a serem cobertos. A ocupação Vicentão, que fica na rua Espírito Santo, no Centro da capital, recolhe uma contribuição de R$ 50 mensais por família, independente do número de integrantes de cada uma. O valor foi decidido em assembleia no momento do assentamento e o dinheiro paga basicamente a compra dos alimentos para a cozinha comunitária, que serve três refeições por dia a cerca de 200 famílias. No local, há ainda uma creche comunitária e um pré-vestibular social. Eles não possuem instalações de água e luz.

A ocupação é acompanhada pelas Brigadas Populares, que prestou apoio na inspeção do edifício antes da entrada das famílias e disponibiliza profissionais voluntários, como advogados, arquitetos, engenheiros, professores e pedagogos – a creche possui estagiários estudantes da Pontifícia Universidade Católica (PUC) e do Instituto Metodista Izabela Hendrix. De acordo com Túlio Freitas, das Brigadas, a organização se sustenta através de doações, contribuições dos militantes e do Bazar Frida Kahlo, realizado mensalmente. “Não tem nenhum partido, nenhuma força externa. É nós por nós”, diz Túlio.

Leonardo, do MLB, diz que a contribuição das famílias que integram os movimentos sociais por moradia é essencial para a continuidade do projeto político. “Se eu não for pedir para as famílias, aquilo que não for de doação eu vou conseguir como? Eu vou pedir a quem? Aos empresários? Às empreiteiras? Aos políticos?”, questiona Leonardo. “Quem financia a luta são as próprias famílias. É a luta delas financiada por elas”, afirma.

O MLB possui um ônibus que ganhou por doação, mas precisa de dinheiro para custear o diesel. O veículo é usado para a integração das ocupações, realização de bazar para arrecadação de fundos, panfletagem, transporte para reuniões e até exibição de filmes. O movimento acompanha a ocupação Carolina Maria de Jesus, localizada na avenida Afonso Pena, também no Centro, cujo prédio precisou ser revitalizado para a chegada das famílias, principalmente em sua parte hidráulica.

“(A questão central) não é pedir a contribuição, e sim como é aplicado o dinheiro”, destaca Leonardo. Segundo ele, as denúncias de corrupção sistêmica no país gerou a “tática” dos opositores aos movimentos sociais de “abraçar as outras ideologias e morrer todo mundo junto”. “Eles vão tentar dizer que todo mundo é corrupto, que rouba, que todo mundo tem preço”, diz.

As ocupações em Belo Horizonte também possuem regras de segurança para evitar tragédias como a que ocorreu em São Paulo. A Vicentão possui apoio de professores universitários que dão assessoria contra riscos de incêndio e apoio em questões de salubridade do edifício. Por isso, tanto a comunidade da rua Espírito Santo quanto a Carolina Maria de Jesus possuem uma cozinha comunitária central, com extintores por perto, e proíbem os moradores de manterem fogões nos andares, estruturas de madeira ou usarem velas. Para não sobrecarregar a rede elétrica, a Carolina Maria de Jesus também limita o número de chuveiros elétricos nos andares.

Segundo os movimentos sociais, órgãos públicos não são impedidos de entrar nos edifícios para realização de inspeções. Em contato com O Beltrano, a Prefeitura informou que a Defesa Civil realiza ações preventivas de avaliações de riscos nas ocupações, que geralmente são pedidas pelos próprios moradores. Eventualmente o órgão age por conta própria quando identifica situação de risco.

“O que nós, como movimento, temos reforçado é que quem ocupa não é culpado”, diz Tulio. Ele e Leonardo veem dois culpados pela tragédia de São Paulo: a omissão do poder público nas esferas municipal, estadual e federal, e a especulação imobiliária que propositalmente deixa imóveis abandonados se degradarem. “Se o Estado visse isso (políticas de moradia) como prioridade, não haveria necessidade de ocupar”, afirma o militante das Brigadas Populares. Leonardo lembra que o governo de Michel Temer praticamente acabou com o Minha Casa, Minha Vida, reduzindo o número de contratações de 2 milhões para 100 mil unidades por ano, e que os municípios não aplicam o Estatuto das Cidades no que toca ao estabelecimento de “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental” (https://goo.gl/bk2VC8).

Decretos de Kalil

Em Belo Horizonte, um primeiro passo já foi dado nesse sentido de regularização da propriedade urbana em benefício da coletividade. Parte das áreas ocupadas da capital se tornaram Assentamentos de Interesse Social a partir do Decreto nº 16.888, de 12 de abril. Segundo a Secretaria Municipal de Política Urbana, 93 mil pessoas serão beneficiadas com a urbanização de 119 áreas nas regiões do Barreiro, Leste, Nordeste, Noroeste, Norte, Oeste, Pampulha e Venda Nova.

O texto da medida afirma que os assentamentos são considerados consolidados em decorrência de sua extensão, do número de famílias ou do tempo de ocupação, e tem como um dos objetivos “desenvolver estudos necessários à melhoria das condições ambientais, urbanísticas e de infraestrutura a serem viabilizadas considerando os limites legais, financeiros e as prioridades da Política Municipal de Habitação” (https://goo.gl/3u5Mqj).

Na prática, a ação garante que os moradores das áreas listadas não possam ser despejados, e projeta ações de urbanização de curto prazo, como saneamento básico, luz e água. Em nota, movimentos sociais criticam a medida por ter excluído várias outras ocupações: Vila da Conquista (Ventosa), Vila Novo Paraíso e Fidel Castro (Palmeiras), Pomar do Cafezal e Novo São Lucas (Serra), Candeeiro (Oeste), Lampião (Norte), Nelson Mandela, Horta I e Horta II (Barreiro), Vicentão e Carolina Maria de Jesus (https://goo.gl/mFUWYu).

Além disso, no mesmo dia, um outro decreto, de número 16.889, estabeleceu ações de Controle e de Monitoramento de Áreas Públicas Municipais, criando o Grupo Executivo de Controle e Monitoramento de Áreas Públicas Municipais. A iniciativa pretende coibir o surgimento de novas ocupações. A Guarda Municipal de Belo Horizonte fará o monitoramento de áreas da cidade sob risco de serem tomadas por famílias sem teto. Mas militantes alertam para a inconstitucionalidade da medida, que abre brecha para que ocupações sejam despejadas sem ordem judicial.