Sonho Americano (quinta e última parte)

Deportada três vezes, presa por mais de 40 dias, transferida para sete presídios de segurança máxima, algemada e humilhada. Nesta última matéria da série sobre imigrantes ilegais nos Estados Unidos, conheça a história de violências vivida pela paranaense Haidê Arneiro.


Por Clarissa Carvalhaes

Correspondente em Nova York

Arquivo Pessoal

FAIRFIELD/CONNECTICUT – “Eu não podia desistir. As pessoas que deixei no Brasil… minha filha, minha mãe, elas dependiam de mim. Eu sabia que precisava voltar (aos EUA), e foi por isso que voltei”. Quando Haidê recorda o que passou para chegar aos Estados Unidos, o choro e o riso se misturam. “É um turbilhão de emoções”, diz, antes de dar início ao relato de sua história.

Haidê vive há 17 anos no estado de Connecticut, a pouco mais de uma hora de Nova York. Há mais de 12 anos não visita o Brasil porque, assim como a maior parte dos brasileiros, vive ilegalmente e o risco de ser impedida de retornar aos EUA é grande demais.

Ela nasceu e foi criada na pequena São João do Caiuá, cidade que tem hoje pouco mais de seis mil habitantes. Conseguiu entrar legalmente nos Estados Unidos por duas vezes, ambas com o visto de turista. Na terceira, as coisas deram errado, e Haidê foi deportada do próprio Aeroporto Internacional John F. Kennedy, em Nova York. Não demoraria muito para uma nova investida, dessa vez pela fronteira mexicana.

“Onze dias depois, lá estava eu no meio do Rio Grande. Fazia parte de um grupo e tentávamos atravessar pela fronteira entre as cidades de Novo Laredo (México) e Laredo (EUA). Pra quem não sabia nadar, eles davam uma boia. Falavam para não bater os braços ou as pernas, para a ‘imigração’ não detectar movimento na água. Nós estávamos atravessando um rio gelado, no breu, e ninguém podia respirar direito para não ser visto. Logo que a última pessoa cruzou o rio, os agentes nos pegaram. Olharam meus papéis e, quando viram que eu tinha sido deportada há apenas 11 dias, um deles falou: ‘Pelo amor de Deus, o que você está fazendo aqui de novo?’”.

Arquivo Pessoal

FRONTEIRA DO MEDO

Por essa primeira tentativa ilegal de entrar no país, Haidê ficou presa por 24 dias. Passou por sete presídios de segurança máxima. “Foi horrível. Eles fazem de tudo para você não voltar. Não agridem fisicamente, mas abalam totalmente o seu psicológico. Você fica horas respondendo perguntas, algumas que não fazem nenhum sentido. Te mandam de presídio em presídio, para te enlouquecer. Eu fiquei com algemas nos pés e nas mãos e, como são presídios de segurança máxima, não se vê a luz do dia, não se vê o tempo passar. É um terror”.

Apesar do medo e da humilhação, Haidê assegura que em nenhum momento pensou em desistir. “Eu pensava: só por desaforo, vou voltar (risos)”. “Naquele momento eu não podia parar. Minha filha estava fazendo faculdade, tinha pessoas que dependiam de mim. Eu simplesmente não podia”.

COIOTES

“Os coiotes tiram totalmente a sua integridade física e moral. Quando fui presa pela primeira vez, eles levaram tudo. Eu não tinha um centavo comigo. Nós não somos nada nas mãos dessas pessoas. Mesmo assim, 28 dias depois de ser deportada pela segunda vez, lá estava eu, novamente na fronteira do México”.

Quando Haidê tentou essa segunda travessia, a Globo transmitia no Brasil a novela América. “Você consegue imaginar o que passou pela cabeça da minha família, dos meus amigos, da cidade inteira, quando eles descobriram que eu tinha sido pega de novo? ‘Pronto! Agora ela vai ficar presa uns 10 anos’”, recorda Haidê, aos risos.

Desta vez, a tentativa da travessia foi por terra, em uma região semi-árida, quente. E nova prisão pela polícia de fronteira. “Lá estava eu, no mesmo presídio, 28 dias depois, vivendo aquele pesadelo de novo”.

Foram novos 19 dias detida. “Os americanos, na imigração, perguntavam: ‘Por que você deixou a gente te pegar? Nós não estamos aqui para pegar brasileiros. Vocês não são nosso alvo, não traficam drogas nem pessoas. Por que você não correu?’. Eu não conseguia entender aquilo. Só respondia que a gente tinha corrido, mas eles conseguiram nos alcançar”.

No presídio, Haidê foi colocada presa por dias em uma cela sem janelas, com banco de concreto e ar condicionado fortíssimo. “Tão forte que minha cabeça estava prestes a explodir. Não te dão agasalho. Fiquei sozinha, só com a roupa do corpo. Fazem isso para que você não queira nunca mais voltar”.

Arquivo Pessoal

TUDO OU NADA

A terceira tentativa não poderia ter erro. Como já tinha gastado todas as economias de três anos de trabalho duro nos Estados Unidos, Haidê precisou esperar por quatro meses para tentar nova travessia pelo México. Pelo serviço, desembolsou US$ 14 mil. “Mas os coiotes arrancaram muito mais de mim. Nessas idas e vindas, perdi quase US$ 100 mil. Quer saber se eu me arrependo? Não, mas também não tentaria com eles outra vez”.

Haidê aterrisou no México com outras 11 pessoas para uma travessia em grupo. E novo pesadelo quando percebeu que haviam sido sequestrados por coiotes rivais ao bando contratado.

“No início a gente não tinha ideia do que estava acontecendo. Achávamos que estávamos com os coiotes certos, mas no aeroporto fomos parar na van errada. Passamos fome, sede, calor, dormíamos amontoados. Ficamos uma semana dentro de um cubículo. Só quando conseguimos acionar o agente no Brasil, o resgate foi pago e os coiotes, enfim, nos entregaram para o bando certo. Essa última travessia foi tão bem paga que nós atravessamos a fronteira numa paz aterrorizante. Passamos tranquilamente por um rio que mal cobria o pé. Era impossível que os agentes da imigração não estivessem nos vendo. Eu falava com o coiote e ele ria, dizendo que eu poderia ficar tranquila. Parecia impossível, mas finalmente eu consegui”.

ILUSÃO E LUTA

Não bastasse o histórico das violências impostas na imigração ilegal, Haidê ainda precisou enfrentar um relacionamento abusivo: sofreu violência doméstica e, por estar ilegal, não procurou a polícia. “Sofri muito e foi difícil me libertar de tudo. As travessias pelo México, a violência que suportei…”.

Professora de história e geografia, que se especializou em meio ambiente no Brasil, Haidê tem hoje 54 anos e trabalha, como a maior parte das brasileiras ilegais, com housecleaning (faxina doméstica) e housekeeper (emprego doméstico). Levanta às 6 da manhã trabalha até às 16h30. E ainda tem fôlego para ir à academia e fazer ioga.

“Com essa rotina, consigo ter 80% do que uma pessoa rica aqui tem. Eu consigo ajudar minha família no Brasil, mandar roupas paras minhas netas e dinheiro para minha mãe. Apesar disso, toda essa segurança e conforto são ilusórios. Se você não tem o papel (Green Card), vive num país que não te deixa visitar as pessoas que você ama. Não vale a pena”.

Haidê está em contagem regressiva para deixar, de uma vez por todas, os Estados Unidos. Seu maior desejo é reencontrar a mãe, os irmãos e os amigos que não vê há 12 anos.

“Quando encontro alguém ilegal aqui, mesmo que tenha acabado de chegar, sempre digo ‘vá embora’. Ficar ilegalmente nos Estados Unidos não vale a pena. Trabalhei durante três anos para uma senhora que morava em um hotel com campo de golfe. Um hotel tão luxuoso, e você não imagina o quão solitária era aquela mulher. Isso é estranho. É difícil lidar com a frieza afetiva do americano”.

No ano passado, Haidê tentou um casamento forjado. Desembolsaria US$ 15 mil para ter em mãos o Green Card. Mas o pretendente desistiu quando soube das prisões. “Você consegue imaginar a saudade que sinto? Tem 12 anos que não vejo minha mãe!”, diz emocionada. “As minhas amigas no Brasil cresceram profissionalmente, e eu estagnei intelectualmente. Sei falar inglês, mas o que ganho não é suficiente para pagar um mestrado sem a ajuda do governo. O imigrante ilegal só tem objetos de consumo, mais nada. Quando digo que vou embora, as pessoas acham que sou louca, mas já consegui o que vim buscar. Minha filha já é fisioterapeuta, tem o próprio negócio, e tenho um orgulho imenso disso. Hoje, olho para o calendário e falo: ‘só mais dez meses’. Estou trabalhando muito para isso, para juntar uma grana e ir embora. E eu sei que, quando voltar, vou encontrar o caos no Brasil. Sei também que não vai ser a mesma coisa, porque alguns dos meus grandes amigos já morreram. Mas, a cada perda, mais vontade tenho de voltar”.