Sonhos realmente não envelhecem

“Planeta Sonho”, show concebido por Márcio Borges e Murilo Antunes, reúne time de peso do Clube da Esquina, nesta quinta-feira, no Sesc Palladium. Em bate papo com O Beltrano, os dois letristas falaram sobre a relação com a palavra e os sonhos que continuam vivos através da música.


Por Lucas Simões

Publicado em 19/04/2018

Marcio Borges e Murilo Antunes – Foto: Lucas Simões

“Em tempos de ódio e loucura coletiva, bom é saber onde estão os sonhos que não desistimos de sonhar e as palavras que alimentam nossos corações”. A frase de Márcio Borges reforça uma máxima atemporal para a turma do Clube da Esquina: sonhos realmente não envelhecem. E mais: “eles nascem pelas palavras que plantamos”, completa Márcio. No quintal da singela casa da rua Ipiranga, no bairro Floresta, Márcio Borges e Murilo Antunes receberam a reportagem de O Beltrano para uma viagem no tempo, costurando passado, presente e futuro em uma ideia só: “não desistir de se reinventar, seja como for”, como crava Murilo.

Enquanto afinam um dos últimos ensaios no estúdio dentro da casa, Márcio e Murilo, dois dos principais letristas do Clube da Esquina, esticam as pernas no sofá do quintal e abrem mão de dar uma entrevista à esta reportagem para sonhar sem amarras e do jeito que fazem melhor: escolhendo palavras certeiras. Na noite desta quinta-feira (19/05), eles estreiam o show “Planeta Sonho: Onde Bate o Coração da Palavra”, no Grande Teatro do Sesc Palladium, às 21h, com direito a música inédita e arranjos monumentais da Orquestra de Câmara do Sesc.

Doente no fim do ano passado, Murilo Antunes passou quase um mês na UTI, onde recebia a visita praticamente diária de Márcio Borges, mesmo com o amigo residindo em Visconde de Mauá, divisa de Minas com o Rio de Janeiro. “Foi um tempo que fiquei muito em BH. O Murilo chegou a ficar inconsciente. E a primeira coisa que disse quando acordou foi: ‘vamos fazer aquele nosso show, vamos colocar o sonho em prática. Aí no hospital mesmo eu comecei a fazer todo o roteiro do show”, conta Márcio.

“Planeta Sonho”, clássico na interpretação do 14 Bis e que dá nome ao show, reúne 18 músicas, sendo a maioria delas de Márcio Borges e Murilo Antunes, assinadas com diversos parceiros, como Milton Nascimento, Toninho Horta e Flávio Venturini. O fio condutor do espetáculo parte das oficinas de letras que os dois amigos realizam há um tempo — uma delas, concluída na semana passada, em um projeto do Sesc. Por isso, o repertório escolhido preza a força e a curiosidade das palavras — e não necessariamente contempla os maiores clássicos do Clube da Esquina.  “Como a ideia de sonhar está intimamente ligada à palavra, àquilo que conseguimos dizer nas músicas, que é onde bate o coração da palavra, escolhemos canções que têm letras curiosas. Não as mais famosas do Clube, mas aquelas que despertam mais provocação e sentimentos diversos, ao mesmo tempo”, pontua Murilo.

No repertório estão pérolas como “O Trem Tá Feio” (Tavinho Moura e Antunes), que carrega uma forte raiz rural, “Falso Inglês” (Toninho Horta e Fernando Brant) e uma das menos conhecidas, “Mayabê Ypô Cori” (Antunes e Flávio Henrique), com a letra toda escrita em tupi-guarani e que, em tradução livre para o português, quer dizer “não sei o que será”. De hits, “Linda Juventude” (Márcio Borges e Flávio Venturini) e, quem sabe, algum bis de improviso, como a turma está acostumada a fazer. Além dessas, uma inédita de Murilo Antunes e Telo Borges vai dar o ar da graça pela primeira vez com arranjo de banda. “É a música ‘Amor e Nada Mais’, ela nunca foi gravada. Nós fizemos para colocar na roda, cantamos ao vivo algumas vezes, mas fizemos essa música há uns três meses só, é bem recente”, diz Murilo.

No palco, estarão juntos 14 Bis, Tavinho Moura, Beto Lopes, João Antunes, Bárbara Barcelos e Yuri Vellasco, abarcados por um telão de led de 26m², com projeções das letras das músicas e também uma série de imagens oníricas ilustrando cada canção. “São mais de quarenta anos de afinidade musical, o pessoal aqui se reconhece muito só de olhar um para o outro. Às vezes olhar também é palavra para a gente, quando você consegue se reconhecer no outro só olhando, na minha concepção, é falar em silêncio”, poetisa Murilo.

Essa ideia arraigada da palavra e da poesia, para além da música, também é marca latente do show. Presentes no palco em momentos específicos, Márcio Borges e Murilo Antunes vão declamar versos poéticos, incluindo um trecho do famoso texto “A Palavra”, de Pablo Neruda — praticamente uma literatura de cabeceira da turma do Santa Tereza. “Esse texto do Neruda ele fala dos colonizadores. Fala dos colonizadores da América Latina. Fala dos espanhóis que levaram tudo dos chilenos, as riquezas, o ouro, as comidas, mas deixaram o mais importante, que é a língua. É um texto lindíssimo, e a gente fala esse texto no show, vamos estar no palco e atuamos em alguns trechos poéticos, como esse do Neruda”, pontua Murilo.

Além da estreia em Belo Horizonte, a ideia é que o show “Planeta Sonho” possa rodar por outras cidades do país, ainda neste ano. “Nós esperamos convites agora porque o show está pronto e a vontade é fazer uma espécie de turnê. Espalhar a força da palavra que permite sonhar”, completa Murilo. Com as línguas afiadas, Murilo Antunes e Márcio Borges falam, nesta entrevista abaixo, sobre o início da poesia na vida dos dois, a importância de sonhar mesmo em meio ao caos e também contam os projetos futuros, incluindo uma série de parcerias que vão de Flávio Renegado a Venturini.

Qual é a força da palavra na vida de vocês?

Márcio Borges: Palavra é o meu dom, uma espécie de destino. Quando eu tinha 13 anos, eu era entregador de telegramas. Então, eu entregava palavras. Depois, fui ser jornalista, crítico de cinema: palavra de novo. Depois, comecei a escrever meus próprios textos, poemas, ensaios. Eu tinha muita vergonha de mostrar meus textos. Até que um dia o Marilton, meu irmão, pegou minha mala sem minha autorização, abriu, e mostrou tudo para o Milton Nascimento, que era um grande amigo dele. Não era nem meu amigo, na época…

Murilo Antunes: E era uma mala sem alça, hein, eu lembro muito bem…

Márcio Borges: Isso, era uma mala sem alça e velha que eu enfiava debaixo da cama. Aí, um dia cheguei em casa, estava lá o Bituca e o Marilton sentados na minha cama revirando meus papéis da mala. Eu me senti um pouco desnudado porque meus grandes segredos estavam ali. Mas, foi uma coisa que impressionou muito o Bituca. Ele falou: ‘eu quero ver que ideias são essas’. Então, ele se aproximou de mim, começamos a ser melhores amigos de imediato. Isso foi em 1964, foi exatamente o início da ditadura, por isso é inesquecível. A gente tinha se mudado, no ano anterior, em 1963, para o Edifício Levy. O Milton também, saindo de Três Pontas, foi morar no mesmo prédio. Então, confluiu tudo ali. Neste prédio a gente começou a fazer nossas primeiras músicas, tanto as minhas primeiras quanto as primeiras do Milton. Fomos até para programas de auditório para músicos iniciantes. Fomos lá um dia, eu e Milton, para compor uma música ao vivo no programa com tempo determinado, O programa tinha 50 minutos e era esse tempo para fazer a música. Nessa, compusemos um grande hit da nossa vida, a música ‘Tarde’.

Murilo Antunes: Esse negócio da palavra… Eu tenho uma lembrança forte que me veio à cabeça agora, o que me fez ter vontade de escrever de verdade. É sobre um escritor carioca chamado Nelson Coelho. Eu tinha uns 15 anos e li um conto dele genial. Era sobre um cara que chegava num bar, começa a conversar com um sujeito ali e com o barman. Só que a conversa dele era o seguinte: ele enfiava a mão no bolso e ia tirando palavras e desenvolvia os assuntos de acordo com as palavras que ele tirava do bolso. E esse negócio ficou na minha cabeça, fica até hoje…

Márcio Borges: É, o Murilo ficou querendo tirar umas palavras do bolso também, e que bom que ele tirou, né?

Murilo Antunes: Com certeza, é mais ou menos o que a gente faz, a gente tira palavras dos bolsos. Essa época eu estava começando a escrever, fazia mais poemas simples. Mas a gente estudava no Colégio Estadual Central e tinha uns professores muito legais. Por que eles davam uma atividade, por exemplo, ler um conto do Guimarães Rosa e o exercício era você escrever uma história autoral imitando o estilo do cara. Era um exercício espetacular para infiltrar na obra do autor e aprender a desenvolver uma linguagem, encontrar palavras. Aí, músicas e poemas vieram na mesma época.

Murilo Antunes: É claro que a música é mais sedutora, as pessoas ouvem, a música roda mais e chega mais nas pessoas do que a palavra escrita, que é mais osso, né? Poesia é difícil, né?

Márcio Borges: Eu concordo. A música chega, mais do que em lugares, mas em histórias de pessoas que a gente não imagina. Mas eu também adoro a escrita. Publiquei quatro livros, incluindo a tradução dos poemas do Paul McCartney, a tradução autorizada por ele. É um belo livro, apesar de ter ficado perdido nas livrarias porque poesia não vende quase nada. Mas é o único livro de poesias do Paul, eu tive a honra de traduzir, o “Blackbird Singing”.

Planeta Sonho é um show que tem a intenção de permitir às pessoas sonharem, mesmo nesse momento conturbado que estamos vivendo?

Márcio Borges: Eu sempre achei que contra a situação concreta e muitas vezes até cruel, nada como a gente ter uns devaneios. Por que os devaneios nos tornam mais humanos. Aquelas coisas que a gente faz sem compromisso com a sobrevivência, sem compromisso em agradar fulano ou beltrano.

Murilo Antunes: Sonhar alivia um pouco a dor também, tem isso…

Márcio Borges: Sonho muitas vezes são aspirações que você não tem necessidade absoluta de realizar, mas você tem a necessidade de continuar sonhando. Eu acho que um pouco do momento que vivemos no Brasil é isso: a coisa está feia, esquisita, cheio de coisas estranhas, mas a gente tem a nossa imagina. E que qualquer transformação da realidade começa no pensamento. A gente primeiro pensa no que vai fazer. E o poema e o sonho são grandes alimentos para essa transformação da realidade. Escrevo porque acredito nisso. As músicas que eu fiz são as sementes que plantei, algumas floresceram e viraram árvores frondosas, outras morreram no canteiro. Mas, de qualquer forma, são sementes que joguei no Planeta Terra aí.

Foto: Lucas Simões

E vocês têm jogado sementes ainda, têm escrito com frequência?

Márcio Borges: Com certeza. No momento, estou envolvido com um trabalho com um parceiro novo meu, que é meu primo, o João Ângelo. Começamos a fazer essa parceria há uns três, quatro anos. Agora, estamos querendo fazer uma série de canções para produzir um CD e, de repente, o disco virar um espetáculo musical, um show. Eu adoro fazer roteiro também, atualmente estou exercendo a função de roteirista. No presente momento estou desenvolvendo um roteiro para fazer um documentário sobre o Flávio Renegado, um filme de 50 minutos sobre a vida dele. Ele é meu super amigo, nós somos brothers mesmo. Ele me convidou e, inclusive, o Flávio está fazendo um sampler em cima da música “Para Lennon e McCartney”, que vai entrar no filme. É uma coisa que estou achando ótima. Mas compor juntos, eu e Flávio ainda não compomos. Mas, pode acontecer.

Murilo Antunes: Eu também não paro, não. Tenho composto com o Flávio Venturini, que é o cara que eu tenho mais músicas. Estamos preparando alguma coisa com o Tavinho também. Estou com uma música que essa semana chegou para mim, música do Nivaldo Ornelas, que ainda estou na fase de ouvir, degustar, para só depois escrever. Semana passada entreguei um bolero novo para o Célio Balona. Então, a gente não para.

A motivação para usar a palavra muda de tempos em tempos?

Márcio Borges: Muda demais. Muda não só para melhor, mas para pior também. Às vezes a gente perde toda a motivação, não tem graça de compor. Principalmente nesses tempos meio sombrios com a situação do Brasil. Eu mesmo parei, há uns dois anos, eu acho, parei de compor e coloquei minha cabeça em outro mundo. Falei para mim mesmo: ‘não vou mexer com música agora’. Mas não parei de escrever, por outro lado, só não queria desaguar isso.

Murilo Antunes: É bom que mude a motivação. É claro que a gente não tem mais o impulso e o tesão de garoto, aquela coisa de estar escrevendo desesperadamente. Mas, por outro lado, o filtro vai ficando melhor. A gente olha para o mundo e, com muita humildade, entendemos esse mundo um pouquinho melhor. Isso me motiva a escrever, mantém a chama acesa.